eu toda a minha vida pensei por mim,
forro, sou nascido diferente.
Eu sou é eu mesmo.
Diverjo de todo o mundo.
Guimarães Rosa
Em As palavras e as coisas, Michael Foucault destaca como função própria do saber, não apenas ver e demonstrar como também interpretar. O que aqui se pretende é conhecer o conto "Se eu seria personagem", de Guimarães Rosa, e para tanto interpretá-lo, já que, conhecer, para Foucault, é interpretar, ou ainda, "ir da marca visível ao que se diz através dela e, sem ela, permaneceria palavra muda, adormecida nas coisas" 2 . Interpretar, aqui será, pois, expor uma de suas possíveis leituras, que se mostra pertinente.
O corte inicial é feito na leitura do primeiro parágrafo do conto, onde o típico narrador rosiano expõe sua característica de pensador de sua condição humana:
Note-se e medite-se. Para mim mesmo, sou anônimo; o mais fundo de meus pensamentos não entende minhas palavras: só sabemos de nós mesmos com muita confusão 3 .
Ao designar-se anônimo de si mesmo e destacar uma confusão do eu, o narrador torna possível uma reflexão sobre a pluralidade do eu. O que é observado no decorrer da narrativa é um movimento voltado para uma auto-leitura. E é aí, que o eu narrador se faz personagem por ele mesmo, quando este é leitor de si mesmo. Um leitor que tem que interpretar suas próprias palavras, já que estas não correspondem a seus pensamentos. O eu narrador aqui admite seu anonimato ao mesmo tempo em que admite o emaranhado de fios que o compõe.
Para melhor entender essa confusão do eu confessada pelo narrador, onde os pensamentos não entendem as palavras 4 , cita-se o pensamento de Condillac exposto por Foucault, "Se o espírito [pensamento] tivesse poder de pronunciar as idéias 'como as percebe', não há dúvida de que 'as pronunciaria todas ao mesmo tempo'" 5 . É um emaranhado de idéias que formam o eu. Um eu que não conhece suas palavras, sempre anônimo a si mesmo, que nunca é um eu e sim, uns eus. Bakhtin fala de um diálogo constante presente na existência do eu, em suas palavras: "Eu não posso passar sem o outro, não posso me tornar eu mesmo sem o outro" 6 . O outro de Bakhtin em sua teoria dialógica pode ser relacionado ao tu de Benveniste, que é reciprocamente constitutivo do eu. E é dessa relação que surge o ele como não-pessoa, formando, assim, a tríade. É interessante notar que o conto trata também de uma tríade, o narrador, Titolívio Sérvulo e Orlanda.
Dessa tríade, ressalta-se agora o personagem Titolívio. Este é apresentado pelo narrador como o amigo ideal: "Titolívio Sérvulo, esse, devia ser meu amigo. Ativo, atilado em ações, néscio nos atos; réu de grandes dotes faladores" 7 . Suas características apontam para um ser precipitado, ingênuo e falador, o oposto da auto-descrição do narrador: "Sou tímido. Vejo, sinto, penso, não minto. Me fecho" 8 . Um ser cuidadoso, meticuloso e introspectivo. Titolívio pode, portanto, ser o outro do narrador anônimo, seu duplo. O interlocutor perfeito, o oposto como peça fundamental do diálogo. Bakhtin aponta o diálogo como única possibilidade do ser, em suas palavras: "Ser significa comunicar-se pelo diálogo" 9 . Ser, portanto, é plural, ou como diz o narrador do conto: "Viver é plural".
Benveniste destaca o tu como interlocutor do eu e fator essencial para sua constituição. Também chama o tu uma quase-pessoa, ativadora do diálogo, e acrescenta a qualidade de objetividade ao tu contrapondo-se à subjetividade do eu 10 . Pode-se, portanto, percebendo a oposição dos dois personagens tomá-los como diálogo, ainda que não em sua forma tradicional. Mas um diálogo interno do eu, pois o tu é apresentado como parte do eu: "...T., colado a mim..." 11 . Mais adiante, o eu admite seu caráter duplo/triplo: "Transmentiu-me: o embeiço - reflexo, eco, decalque. Já éramos ambos e três'' 12 . O reflexo, o eco, o decalque é o desdobramento do eu, ou seu duplo 13 , o outro. O que leva a pensar que T pode ser o outro do narrador ou, ainda, T pode corresponder ao Tu de Benveniste.
Nota-se que na trama, após ser introduzido pelo narrador, Titolívio passa a ser chamado apenas pela inicial de seu nome, T. É pertinente lembrar que a mesma letra T usada para referir-se ao personagem Titolívio também é empregada para designar o tempo com o único diferencial de este ser em minúscula, t. "O tempo é que é a matéria do entendimento" 14 , ou seja, só o tempo permite o afastamento necessário para interpretar-se, ler-se. Nas palavras do narrador, "O futuro são respostas" 15 , um futuro sempre plural. E o passado? O tempo passado é lacunar. Ao contar sua estória de amor, o narrador admite sua parcialidade nos fatos, admite que esta é uma possível leitura, "releitura da vida" repleta de floreios."Salvem-se cócega e mágica, para se poder reler a vida" 16 . Em outro momento, suas palavras são reveladoras: "Aí a minha memória desfalece. Viver é plural - muito do que não vejo nem invejo" 17 . Ele admite a falha de sua memória, e com isso sua recriação dos fatos, ou releitura da vida. "Viver é plural", viver é recriar, reler sempre um eu outro. O narrador admite sua multiplicidade, admite um ser plural, ou seja, admite um ser somos. Um ser em diálogo, e nunca um ser unívoco. O texto faz ainda mais uma alusão ao que se refere à releitura da vida, ou recriação dos fatos, na nomeação do personagem Titolívio Sérvulo.
O nome deste remete ao historiador romano Tito Lívio 18 que ficou famoso pelo seu estilo inovador. Sua história era escrita revelando sua parcialidade, questionando personalidades importantes, enfatizando acontecimentos cotidianos e não tendo a preocupação da veracidade dos dados. A história contada por ele não escondia seu caráter de estória, ou seja, sua abertura ficcional. O tema da impossibilidade de capturar uma verdade absoluta 19 é corrente na narrativa rosiana. Note-se a grande quantidade de vezes que as palavras história e estória são encontradas 20 . Em Grande Sertão Veredas, por exemplo, estória aparece 24 vezes e história 11 vezes. Toda a narrativa do conto baseia-se num recorte ficcional no tempo. A personagem amada aparece estática, parada, como um quadro ou ainda uma foto. "Orlanda e uma data, tempo, t?" 21 . Orlanda em uma data específica, parada no tempo, isto é, uma Orlanda "Mesma e minha", cuja alma é "sua minha". Orlanda moldurando o eu, sendo parte do eu 22 . Aqui a personagem feminina faz-se parte do narrador, pluralizando-o uma vez mais. Ela é o terceiro membro da tríade, o ele, ou seja, "o ela". Personagem que "não surgira apenas: desenhou-se e terna para mim" 23 . Novamente nota-se a marca pessoal de Orlanda, só existente no eu. A construção da personagem feminina do conto, sem voz, e parada no tempo (mas eterna), como em uma gravura, nos permite relacioná-la às características da terceira pessoa na concepção de Benveniste, já que este a considera uma não-pessoa. Benveniste destaca a impossibilidade da forma plural do pronome eu, já que nós não se referece a vários eus, ao mesmo tempo que nós só existe através do eu. "Nós não é um eu quantificado ou multiplicado, é um eu dilatado além da pessoa estrita, ao mesmo tempo acrescido e de contornos vagos" 24 . O contorno vago começa pelo anonimato do narrador, que é dilatado ao juntar-se ao Tu e a ela. O nome da personagem, Orlanda, ironicamente nos remete à palavra Orla, margem, contorno. Contorno que é visto através da dilatação do olhar do personagem/narrador que acontece "depois de drinque inconsiderado" 25 . Um olhar já bêbado, dilatado, portanto, já plural. O olhar do bêbado é apresentado já no prefácio "Nós, os temulentos" 26 .
O eu do conto, olha-se no espelho com sua amada e revela mais uma parte do eu (que agora já não é tão anônimo para o leitor): ela. "Ei-la, alisa a tira da sandália, olha-se terna ao espelho, eis-nos. Conclua-se. Somos" 27 . Ela como parte do eu/tu/ele/outro. O narrador como ser plural. Diante de todo esse estado ébrio do eu 28 , quem é o eu plural do conto? Uma resposta é possivelmente revelada através da pergunta final: "Sou - ou transpareço-me?" 29 , onde o narrador, que já admite sua pluralidade, vai além, questionando-se sobre sua existência. O eu é alguém, ou simplesmente parece ser?
Veja-se agora como o eu revela-se já no enigmático título, "Se eu seria personagem". Começa-se pela alusão ao modo subjuntivo, ou seja, uma vontade, se. O que é peculiar é como Rosa brinca com os tempos verbais. Posto que o modo subjuntivo do verbo ser, isto é, fosse, não aparece, o que é apresentado é o futuro do pretérito, seria. A conjugação da frase, segundo o padrão gramatical, seria Se eu fosse personagem. O que esconde, então, por trás desta rara substituição?
O crítico Arnaldo Cortina 30 , numa tentativa de esclarecer o título, separa o ser do eu anônimo de seu parecer. Para ele, o narrador não é personagem na narrativa que conta, já que este não tem um papel ativo na disputa pela mulher amada. Portanto, a história que lemos seria a história de Titolívio, pois este é o sujeito de todas as ações, do destaque de Orlanda, a sua conquista, namoro, noivado e finalmente é ele quem é dispensado por ela. O narrador, no nível do ser, passa toda a narrativa amando Orlanda e sofrendo calado. Por outro lado, o eu do parecer eximi-se de qualquer ação. Nem amor nem ciúme ele deixa transparecer. Desse modo, se anula como personagem nessa história de amor. Sendo assim, Cortina sugere dois níveis narrativos, ser e parecer e conclui, então, que o narrador anônimo não é personagem desta. Para Cortina, isto justifica o título do conto. Isto é, se o anônimo fosse personagem não haveria o primeiro nível narrativo.
A análise do crítico mostra-se válida, mas não considera a mescla dos tempos verbais do título. Baseando-se em toda a passagem argumentativa mostrada neste texto, pensa-se que a frase título questiona sobre a existência do eu. É pertinente observar que o título, em sua formulação "agramatical" joga com os tempos e os modos do verbo ser. Mais do que isso, ele está pontuado de lacunas ocultas, que por sua vez, escondem a condição do eu durante a narrativa. Para ser mais claro, com o preenchimento desses espaços ter-se-ia o seguinte título: "Se eu fosse eu, eu seria personagem". Indicando, dessa maneira, a existência de um eu através do tempo; que somente condicionado a um passado imperfeito, poderia chegar a ser, num futuro deste passado, um personagem. Um eu que está incapacitado de se ver, como é, posto que só existe no presente.
Portanto, se o eu é o outro, o tu, o ele, ou seja, se o eu é plural. Se o eu não se reconhece fora do presente. Se o eu não é nem só ser nem só parecer. Se a visão do eu é parcial e ao mesmo tempo única. Se o eu é travessia. Então, o próprio eu é incapturável. Portanto, está impossibilitado de ser personagem, pois nunca saberá o que é ser eu.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: Hucitec, 1988.
________________. Problemas da poética de Dostoievski. 3 ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Florense Universitária, 2002.
BENVENISTE, Émile. Problemas de Lingüística geral. Trad. Maria da Glória Novak e Luiza Neri. São Paulo: USP, 1976.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. 8 ed. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
NIETZSCHE, F. "Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral". In: Obras incompletas. 3 ed. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
ROSA, J.G. Grande Sertão:Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
________. Tutaméia. 8 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
SPERBER, S.F. Caos e Cosmos. Leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1976.