Rap no Desterro 4

Por Valdir Olivo (CNPq)
Universidad Federal de Santa Catarina, Brasil

Rapper

"Rap no Desterro" é uma boa denominação para identificar não só a origem do rap; estreitamente ligada ao processo de desterritorialização da população africana com a venda de escravos aliada ao preconceito e estado de total exclusão em que se encontravam as comunidades negras nos Estados Unidos, mas também para explicar a marginalidade que ainda se encontra o rap na região da Grande Florianópolis.

As péssimas condições de vida que sofriam os negros nos EUA em meados da década de 1970 acarretaram surgimento de uma cultura de protesto denominada Hip Hop; essa cultura se divide em três modalidades de expressão, o rap (relato musical), o grafite (manifestações gráfico- plásticas) e o break (expressão corporal) fazem do hip hop uma cultura exclusivamente negra.

O rap tem como características principais, a temática social voltada aos problemas do gueto, o vocabulário também centrado no gueto e a rima marcando a linha rítmica. Diversas foram às escolas e idades pela qual passou o rap, tomando novas dimensões e se transformando cada vez que adentrava um novo país acentuando o hibridismo do gênero.

O hip hop surgiu como uma forma de identidade alternativa como uma maneira construir uma identidade que joga com as distinções hierárquicas e usa do poder de consumo como meio de expressão.

No Brasil as principais transformações pelo qual passou o rap foram: a transformação da questão ética para a de classe social, inserção do papel da religião, a fusão musical com outros ritmos brasileiros e a temática da família sob o lar matrifocal. Os principais centros irradiadores e impulsionadores do rap no Brasil são as metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo.

Apesar dos diversos aspectos em que podemos perceber uma grande influência do rap estadunidense e do eixo Rio- São Paulo no rap florianopolitano, há algumas marcas que tornam o rap ilhoa distinto dos demais, lhe apregoando características típicas. Algumas se mantêm no plano lingüístico como uso de gírias tipicamente desta região. Outra característica típica importante que prevalece nos raps florianopolitanos é o deslocamento do cenário urbano típico das grandes cidades como Nova York, Rio de Janeiro e São Paulo, para um contexto de uma cidade litorânea. O mar e as praias são referências constantes nas músicas do rappers, sendo muitas vezes cenário de conflitos e tensões entre classes sociais, como vimos no rap "Surfista Paga Pau" do grupo Retaliação.


"Surfista Paga-pau"

O rap, hoje mesmo absorvido pela indústria cultural, ainda mantêm uma posição de marginalidade na região de Florianópolis. Acredito ser importante a manifestações de trabalhos como este e eventos como o já citado "Rap no Desterro" para trazer ao mundo acadêmico discussões extremamente relevantes sobre diversos aspectos que se podem ser elaboradas tendo como plano de fundo o rap e o movimento hip hop. Existem outros espaços na cidade em que este trabalho também vem sendo feito como a "Rádio Campeche", que a os domingos dedica parte de sua programação ao rap e a criação do site "radiorima.com.br", que tem como intuito discutir e divulgar o rap local.

1. Rap contemporâneo

A partir de 1996 o rap começa uma nova fase: mescla-se com o rock e outros estilos musicais, incorporando palavras de baixo calão nas composições. Este período marcado por inovação inicia o período mais acentuado de hibridação do rap como gênero musical restrito a uma comunidade, com abertura a novas tendências não necessariamente ligadas ao movimento negro estadunidense.

O conceito de cultura hip hop, de acordo com Trícia Rose, emerge:


(...) como fonte de formação de uma identidade alternativa e de status social para jovens numa comunidade, cujas antigas instituições locais de apoio foram destruídas, bem como outros setores importantes (2004, p. 202).

O Movimento Hip Hop possibilitou que os artistas utilizassem o estilo como forma de construir uma identidade que joga com as distinções hierárquicas de classe. Os rituais de consumo e de roupas são testemunhas do poder do consumo como um meio de expressão cultural (ROSE, 1994:206).

2. O rap no Brasil

hip hop

Porém o que aconteceu com a cultura hip hop à medida que adentrou outros países? É possível perceber como um projeto de modelos culturais tradicionais, homogêneos, orientados para uma nação são transgredidos em uma perspectiva diaspórica da cultura. A globalização cultural é desterritorializante em seus efeitos, pois as relações entre espaço-tempo são modificadas no uso de novas tecnologias no processo de criação e transmissão de conteúdos culturais. Deste modo se alargam os laços entre cultura e lugar (HALL, 2003:36). No caso do rap há de se pensar em genealogias. Se prestarmos atenção a historia do hip hop, percebemos que foram negros de origem jamaicana e porto-riquenha que introduziram as técnicas de dança e algumas das principais técnicas dos Dj's como o sampler e o dumb. Porém, a arte de samplar, cantar com um ritmo descompassado sobre uma linha rítmica marcante, já aparecia em antigos povos africanos.

À medida que chega ao país, a cultura hip hop sofreu, no Brasil algumas transculturações. Pontuarei as quatro que considero principais: a transformação da questão ética para a classe social, inserção do papel da religião, a fusão musical com outros ritmos brasileiros e a temática da família sob o lar matrifocal. Esses pontos, inicialmente, não eram partes da cultura hip hop nos EUA. Esse deslocamento que ocorre é fruto de uma hibridação que García Canclini define como sendo:

<
(...) processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas (2003:XIX).

Essa hibridação possibilita a inserção de caracteres locais em uma prática transnacional como o rap.

O registro dos contextos sócio-espaciais presentes na formação do rap florianopolitano; bem como a presença de processos de hibridação permitirá propor uma leitura não hegemônica na articulação ilhoa, entre raça e classe com o Movimento Hip Hop, organizado em torno da CUFA (Central Únicas de Favelas) no eixo Rio- São Paulo. Como já realizado pela socióloga Glória Diógenes (1998), cada local se rearticula de maneira distinta dentro do movimento. Em Fortaleza, Ceará, as articulações dentro do movimento sobre o papel de gangues e galeras eram dicotômicos e não correspondiam a um padrão hegemônico produzido pela mídia e nem o discurso oficial do movimento em São Paulo através da CUFA. Isto tornou possível intervir na forma de como os jovens desta cidade eram vistos quando associados ao movimento. É digno de nota que seu trabalho lhe rendeu participação em vários projetos da UNICEF e a presidência FUNCI - Fundação da Criança e da Família Cidadã.

Como o rap no Brasil ainda se encontra em plena ascensão tornam-se necessários contínuos estudos que enfatizem também o Movimento Hip Hop, com ênfases no rap, pois ele é um pólo aglutinador dos novos grupos que surgem. Alguns trabalhos como de Vianna (1988), Herschmann (1997), Diógenes (1998), Souza (1998), Minayo (1999), Weller (2001), Abramo (2000), Abramovay (2002) e Yúdice (2004) já percorreram grande parte do caminho, especialmente no que se refere à análise do meio e das condições sócio-culturais das comunidades onde afloram este movimento cultural. Mais recentemente a pedagoga Sandra Regina Adão (2006) realizou na área de educação um estudo sobre a visibilidade do jovem negro no espaço escolar de Florianópolis.

3. O rap no Desterro

rappers

Há a necessidade de se estabelecer ainda, teoricamente, como o rap se articula na formação identitária dos jovens rappers na ilha. Através da análise do discurso, creio ser possível perceber-lo como uma prática socializadora. Em Florianópolis, os grupos geralmente são compostos por quatro participantes que frequentemente travam "batalhas" com outros grupos em festas próprias em algumas casas e locais espalhados pela cidade (SOUZA, 1998). Importante salientar que, apesar de serem, em sua maioria negra, há uma significativa presença de brancos na cena. Estes, apesar de nascidos aqui, possuem muito contato com influências de outras regiões do país, seja pelo contato social (vizinhos, colegas de sala) ou pelo familiar (pais, parentes). Observaram-se essas influências nas letras dos rap e em sua articulação com o Movimento.

O "Rap no Desterro 2 - Hip Hop: performance, fronteira e subalternidade" que ocorreu no dia 08 de dezembro de 2006, proporcionou um espaço de discussão desta prática cultural que, engajada no movimento hip-hop, possibilita o empoderamento de seus membros e reafirma os processos identitários desta classe subalterna. Neste evento, destaca-se a presença de outras áreas como a educação, a psicologia, antropologia, cinema, direito, lingüística e os estudos literários. Esta mescla de áreas, cada uma utilizando ou analisando o rap, sob múltiplos olhares, proporcionou que uma vez mais, se debatesse entre outros pontos, a questão da identidade, segundo Stuart Hall a identidade:


(...) é um espaço onde um conjunto de novos discurso teóricos se intereseccionam e onde um novo grupo de praticas culturais emerge. Trata-se de uma categoria política culturalmente construída em que a diferença e a etnicidade são seu elementos constituintes; a experiência da diáspora se transforma em emblema do presente; a hibridação deixa a sua marca e a fluidez da identidade torna-se ainda mais complexa pelo entrelaçamento de outras categorias socialmente construídas, alem das de classe, raça e gênero. ( HALL, 2005: 20).

Essa hibridação no século XX teve como grande responsável os meios de comunicação em massa, as identidades não se fazem mais no plano espacial, em sim em um contexto global numa espécie de rapsódia da cultura local com a cultura transnacional.

Entender o rap como parte de uma prática literária da oralidade deste grupo, possibilita um desenvolvimento temático no interior da comunidade acadêmica. Pois, o conteúdo do rap é fixado através de uma performance em que o cotidiano, práticas e conhecimentos da comunidade interagem em uma malha com o rapper, produzindo assim uma visão peculiar. O rapper passa, enquanto autor, a ser visto como instrumento catalisador, em que as forças hegemônicas constroem o discurso em um registro poética da "voz da rua". O conceito de oralidade é trabalhado por Zumthor em que afirma:


(...) não há oralidade em si mesma, mas múltiplas estruturas de manifestações simultâneas, que, cada uma na ordem que lhe é própria, chegou a graus muitos desiguais de desenvolvimento. Entretanto seu substrato comum permanece. (1997:31)

A linguagem oral, por ser menos influenciada pela escritura, acaba por ter:


(...) um efeito moral: a impressão, no ouvinte, de uma fidelidade menos contestável do na comunicação escrita ou diferenciada, de uma veracidade mais provável e mais persuasiva (...) mais do que qualquer outra forma de contato, a palavra torna clara, nos indivíduos que a ela confronta, a sua condição de sujeitos: seu 'lugar', (...)resultante ao mesmo tempo de determinações do sistema de que depende e de um engajamento desiderativo. (ZUMTHOR, 1997: 32.)

A oralidade se apresenta também nos textos literários, que recolhe seu material do cotidiano. Para Walter Bruno Berg, o etnólogo Walter Ong propôs uma descrição dicotomizando à cultura em dois estágios: cultura oral e cultura escrita. A cultura oral possui três traços diferenciais: a tendência de adicionar o saber; atitude "enfática", favorável à participação ativa e atitude determinada pela situação concreta (BERG, 1999: 13-15). Em lugar de adotar a dicotomia que acentua a simetria cultural que mostra como a classe dominante monopoliza as técnicas de escrita e tudo o que refere à oralidade, enquanto símbolo subalterno se torna objeto de repressão, e os poetas orais, com ou sem razão, passam a serem porta-vozes dos oprimidos.

A oralidade pode ser vista como a expressão de uma heterogeneidade, em um primeiro instante, indica ação da voz, como o discurso se propaga às gerações seguintes. A oralidade, em uma tradição oral pode ser vista também como processo de produção, conservação e repetição (ZUMTHOR, 1997:33-34) de conteúdo através da voz. A partir de um resgate do cotidiano, de histórias de domínio popular, ou mesmo do próprio dia-a-dia, tanto o griot africano quanto o rapper concebem seus discursos.

Hiphop

A conservação no caso do griot ocorre de maneira oral, pois se apóia na memória de quem o escuta, permitindo que se faça um resgate diacrônico de eventos. A título de exemplo, o Romancero ibérico subsiste até hoje na literatura de cordel, na voz dos repentistas do nordeste brasileiro e no popular de vários países (no México, originou o corrido)(DINIZ, 2004:234). O griots modernos demonstram que a pratica da oralidade toma contada ruas e se insere nos meios áudios-visuais em registro midiatico permitindo, assim, uma interação musica/ouvinte. E a repetição pelos componentes de uma comunidade ocorre de maneira natural, dentro de uma determinada circunstância e tempo (aqui se referindo ao tempo cronológico).

Essa associação a um passado africano serve, neste momento, para estruturar a análise dos conteúdos das canções. De acordo com a pesquisadora Tricia Rose, que demonstra uma tentativa de retirar o rap da posição de produto comercial pós-industrial e situá-lo na história das práticas respeitadas da cultura negra (1994:194). Porém, ressalto a importância da oralidade, não como legitimadora da prática e sim como um meio. E nesse sentido há necessidade de definir outro elemento fundamental desta poética que é a performance, ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida (ZUMTHOR, 1997, p. 33). A performance está diretamente ligada à transmissão oral enquanto a oralidade se apropria da tradição oral (ZUMTHOR, 1997, p. 34). Esse jogo de "aproximação, de abordagem e apelo" faz com que as peças sejam confrontadas: "locutor, destinatário, e circunstâncias", juntando "o locutor ao autor" e "a situação à tradição" a performance propõe um texto que, durante o espaço em que existe, não é passível a erros ou a arrependimentos, justamente pelo seu caráter imediatista. Esta "instantaneidade", ao integrar-se no discurso do rapper, faz com que seja reconhecido e aceito por quem o escuta. É o assassinato de um amigo, que o leva a fazer um rap (elegíaco talvez) sobre a violência do morro onde vive, das mortes sem sentidos, do crime. Embora o input inicial possa ser autobiográfico, o tema do rap não o pode ser, pois a "despersonalização da palavra" permite àquele que a escuta, tomá-la mais facilmente a seu proveito; identificar o que emociona com o que lhe é dito (ZUMTHOR, 1997: 244).

Nos diferentes discursos das canções dos rappers, como é compreendido o conceito de movimento dentro da cultura hip hop, pontuando a forma como este se subverte em relação ao modelo padrão, hegemônico. Para a ACD na vida social há três grandes domínios onde podem ser refletidos no uso da linguagem: Na representação de mundo, nas relações sociais e por fim, nas identidades pessoais e sociais. Este fato é importante se conseguimos perceber que o rap é um registro de uma prática poética oral, e que sintetiza, inicialmente, as acepções do discurso hegemônico a respeito da cultura hip hop. Ao deslocar essa associação, passa a ser possível ver que algumas posições tomadas a respeito dos rappers como sujeitos críticos, engajados em um movimento como afirmam Viana (1988), Diógenes (1998) e Yúdice (2004).


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1 "Desterro" es también el antiguo nombre de la capital de la provincia de Santa Catarina, actual Florianópolis.

2 Referente a la ciudad de Florianópolis

3 Poesía originalmente oral surgida en el nordeste brasileño

4 "Desterro" es también el antiguo nombre de la capital de la provincia de Santa Catarina, actual Florianópolis.


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20 de julio de 2009

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